nOdoa

(nOdoices simples..nada de complicado)

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Já odiei alguém

Lembro-me do meu 1º dia de escola. Fui apenas umas semanas depois do início das aulas, devido a uma operação a um hidrocelo. A minha mãe foi comigo e o meu pai levou-nos de carro até lá. Recordo-me de quando o carro parou e a minha mãe me deu dois rolos de papel higiénico. Enfiei-os para a mochila. Após isto, só já tenho em mente a última escada e a porta da sala de aula. Batemos à porta. Passado um pouco abriu-se. Confesso que já tinha visto muitos miúdos, mas não sentados atrás de carteiras, não dois a dois, não uns à frente e outros atrás. Olhei para eles todos, menos para a professora, talvez por estar meio metro acima.
Fixei-me num. Magrinho, mais alto que os outros, com o último botão da camisa apertado, umas calças beges vincadas e uns sapatos de vela (caso único entre o resto dos miúdos, normalmente desarranjados e de sapatilhas) e tinha uma carteira só para ele, logo na 2ª fila, e dava para ver porquê. Tinha um lugar para cada coisa, por mais mínima que fosse, lugar para a régua, lugar para a afia, lugar para um livro, lugar para um simples lápis, lugar para outro livro, etc. Os lugares estavam tão bem definidos que só faltava estarem marcados e delineados no tampo da mesa. Para culminar, bem à frente, encontrava-se um papel, a fingir de placa identificatória. Lia-se: ENTEVINO (este nome é ficcional, não era o seu verdadeiro nome mas foi aquele que imaginei ao olhar para o papel). Porque me tinha fixado naquele miúdo? Por achar tudo aquilo ridículo!
Deste dia não me lembro de mais nada. Talvez por o meu cérebro ter bloqueado após acumular tanta informação e por me encontrar num local novo, onde iria passar, dia-após-dia, 4 anos ou então simplesmente porque passei o resto do dia a rir-me interiormente e a pensar o quão absurdo me parecia aquele miúdo.
A minha memória vai agora para alguns meses mais tarde, quando já era primavera e o nosso recreio já podia ser usado para as nossas brincadeiras. Jogávamos às pirulitas, à bola e às escondidas. Jogávamos todos os rapazes, as lá faziam as coisas delas. Todos os rapazes, menos um: o Entevino. Lembro-me de um dia, eu e outro, nos termos ido esconder por trás do pavilhão da piscina e por esse mesmo acaso termo descoberto o que fazia o Entevino durante o recreio. Lá estava ele, de joelhos no chão, mais uma frota inteira de carros, catrapilos e tudo o mais dentro da gama dos veículos motorizados em miniatura. Inventava as suas próprias histórias com eles e juntava-lhes barulhos por ele. Nós achámos esquisito ele estar ali sozinho a brincar, mas não ligámos e fomos esconder-nos. Não ligámos porque já sabíamos como ele era: na sua secretária personalizada manteve-se sempre sozinho, fazia o máximo para receber as atenções da professora, quando saíamos para o recreio ele saía para ao pé da mesa da professora e o mesmo no final, quando a professora fazia perguntas para a turma ele levantava o braço e dizia uma barbaridade qualquer, raramente estava connosco e de manhã era capaz de esperar pela professora no portão da escola e oferecer-se para lhe levar os livros ou a mala.
Que posso dizer? Não é que não gostasse dele, mas sim, odiava-o. Não por ele ser mau para mim ou me ter conjurado um feitiço, não por ele ficar parado à minha frente a rosnar e a ladrar ou por se tratar dum género de velhinho que nos mete dois dedos à frente de outros dois, simulando o xadrez, dizendo que a polícia viria aí para me levar para a cadeia. Era simplesmente por a sua maneira de ser me revoltar, por se distanciar dos outros e procurar a ligação com o nosso superior (a professora) e com isso tentar mostrar-se superior, género político de direita. Era por ser o chamado “queixinhas” e noutras vezes o simples “lambe-botas”. E acima de tudo, acima das suas atitudes e da sua tentativa de imponência, achava-o tão ridículo, tão absurdoque quando o via o meu sentimento não era de ódio, mas sim de simples e verdadeiro riso.

O certo é que os anos passaram e com eles a primária. Já passaram mais de 12 anos desde o meu primeiro dia de aulas e a questão impõe-se: O que será feito do Entevino? Será que juntou a uma seita em que todos se vestem de branco e procuram a luz? Será que agora, em vez de um frota de carros de brincar, tem uma garagem com o seu próprio Jaguar junto a outros veículos, pequenos ou maiores, largos ou mais apertados, mas sempre propriedade sua? Ou será que é, também ele, um outro jovem universitário ou a tentar sair do secundário? Eu pessoalmente acho a última um pouco improvável, porque seria um futuro demasiado óbvio. Por isso, eu imagino o seu dia-a-dia da seguinte forma:

Encontro-o às 6:30 da manhã na paragem de autocarro. Não é o pica do autocarro, mas ainda assim entra no autocarro quando este chega e mostra o seu passe. Sai numa das 20 paragens daquele autocarro e dirige-se à porta de uma garagem de reparação automóvel. Espera 2 minutos e chega o gerente que abre a porta, até então fechada. Não vai buscar dentro da garagem mas, no entanto, entra dentro desta. Desaparece dentro da garagem. Volta mais tarde envergando um fato-macaco branco e por mais estranho que possa parecer, enfia-se debaixo de um dos automóveis. O resto do dia-a-dia não tem mais qualquer interesse, a não ser a sua saída da garagem já de noite e sem o fato branco.

Então, as minhas duas primeiras opções aproximavam-se desta minha realidade. Não pertence a uma seita no verdadeiro sentido do termo, mas os mecânicos têm os seus próprios rituais, quanto mais não seja a posse de um calendário ou outro com mulheres nuas. Não tem uma garagem enorme com a sua própria frota de veículos, mas passa o dia numa grande garagem cheia de automóveis. Não anda vestido de branco à procura da luz, mas a verdade é que não vê o sol durante o dia todo, enquanto trabalha envergando o seu fato-macaco branco. Não tem sequer um único automóvel, por mais pequeno que seja, mas traz no bolso o seu L12, que lhe permite deslocar-se.